Este é o livro que ando actualmente a ler. Desculpem o longo post, mas vale a pena ler!
Titulo: No País das Mulheres Invisíveis – Uma médica no Reino da Arábia Saudita
Autora: Qanta A Ahmed
Quando inesperadamente lhe negam o visto de permanência nos Estados Unidos, Qanta Ahmed, uma jovem médica britânica muçulmana, torna--se subitamente uma pária e, num repente, aceita uma oferta de trabalho muito promissora na Arábia Saudita. Não se trata apenas de um emprego - trata-se de uma oportunidade de aventura num país exótico que ela julga entender, num lugar onde tem esperança de se sentir em casa. O que vai encontrar é algo, porém, completamente diferente. O Reino é um mundo à parte, uma terra de contrastes sem paralelo. Qanta descobre a rejeição e o escárnio nos lugares onde acreditava que seria especialmente acarinhada, mas também o humor, a honestidade, a lealdade e o amor vindos donde menos esperava. E para Qanta esta é, acima de tudo, uma terra de oportunidade. Um lugar onde compreende o que uma mulher precisa para se reinventar num país onde as mulheres são invisíveis.Qanta Ahmed passou a infância em Inglaterra, onde se formou na Faculdade de Medicina da Universidade de Nottingham. Tirou quatro especializações: em medicina interna, doenças pulmonares, medicina intensiva e perturbações do sono. Exerce actualmente na Carolina do Sul, EUA.
Capítulo 1
“Procurando uma pausa na intensidade da medicina, exercitei os olhos no mundo que estava mais além. Já o calor do meio da manhã se encrespava com fúria, quando os aspersores espalhavam as suas jóias molhadas na erva queimada pelo sol. Algumas pétalas esvoaçantes agitavam-se sob o vento do Shamaal, que era mais forte nesta altura do dia.
Num lago de sombra formado por uma sebe, um trabalhador abrigava-se do sol. Num estranho amontoado de membros secos e esguios, o Bengali ia almoçando caril e fruta. O pano do seu shemagh estava transformado num turbante ensopado em água, que era escasso alívio para o calor intenso. Mais adiante passou a rosnar um Mercedes de 100 000 dólares, que levantou uma tempestade de pó na sua esteira.
Por detrás da máscara, sorri para o meu reflexo. Suspensa entre vidraças, uma mulher de bata branca devolveu-me o sorriso. Por fora eu continuava a ser a médica que havia sido em Nova Iorque, mas agora tudo era diferente.
Regressei a Khalaa al-Otaibi, a minha primeira paciente no Reino.
Tratava-se de uma beduína saudita, já com mais de 70 anos, muito embora ninguém tivesse certeza acerca da idade dela (na Arábia Saudita não se registavam os nascimentos femininos quando nascera).
Estava ligada a um ventilador devido a uma pneumonia que levara tempo a resolver. Comatosa, não tomou consciência do meu olhar inquisidor. Um colega médico preparou-a para a colocação de uma ligação central (uma grande ligação intravenosa a uma veia profunda).
Durante os preparativos o torso dela ficou exposto. Um outro médico esterilizou-lhe a pele morena e avermelhada com compressas de iodo. Esse procedimento mundano, que eu já tantas vezes executara, dava origem na Arábia Saudita a uma cena surpreendente. Levantei os olhos do campo esterilizado que rapidamente submergia o corpo da beduína num descartável mar de azul. O rosto dela continuava envolto em panos pretos, como se ainda andasse a correr o mercado entre uma multidão de homens indolentes. Eu estava aterrada.
O véu esfarrapado ocultava-lhe todas as feições. Do meio de um poço de nylon negro que se afundava numa boca desdentada, saíam os tubos de plástico que se erguiam da sua purdah (o costume islâmico de ocultar a beleza feminina). Um dos tubos ligava seguramente o ventilador aos pulmões dela, e o outro enviava-lhe alimento para o estômago. Ocasionalmente o conjunto do véu e dos tubos estremecia, por vezes com um soluço, por vezes com a tosse. Cada um desses sons recordava-me que por baixo da máscara estava uma paciente em estado crítico. Através do nylon negro consegui distinguir umas compressas de protecção para os olhos, colocadas sobre as suas pálpebras fechadas. Cuidadosamente, a enfermeira ergueu a ponta do véu para permitir que o médico concluísse a esterilização. No meu enlevo, havia-me esquecido inteiramente de tal procedimento.
Das profundezas desse nylon negro e informe emergia um tubo mais grosso de plástico ondulado, o do circuito do ventilador principal. Era este que lhe sugava os respiros, silvando e balouçando a cada respiração produzida pela máquina. Sem um rosto na ponta, a tubagem desaparecia num vazio, como se ventilasse um véu e não uma mulher. Embora ela estivesse em estado crítico, ocultar-lhe o rosto era de suprema importância, aprendi eu. Encontrava-me arrebatada pelo confronto entre a tecnologia e a religião, a minha religião, uma certa versão da minha religião. Perto de mim ouviu-se uma agitado restolhar.
Atrás da Cortina pairava um membro da família, o filho obediente, que nos espreitava de vez em quando. Estava obviamente preocupado, achei eu, ao ver os seus esguios dedos morenos a desfiarem rapidamente um rosário. Provavelmente estaria em cuidados por causa da inserção da ligação central, como qualquer outro familiar que se prezasse.
Mas de vez em quando ele irrompia num fraseado rápido de vigoroso em árabe, dando instruções à enfermeira. Perguntei-me do que estaria ele a falar. Tudo estava a correr bem; na verdade, daí a pouco a veia jugular estaria canulada. Estávamos quase a acabar. O que poderia estar a preocupá-lo?
Por entre a minha obtusidade, lá discerni uma pista. De cada vez que a manga do médico tocava no véu da paciente e este deslizava, o filho irrompia nuns estertores de ansiedade. Teria talvez uns dezanove anos e exigia à enfermeira que cobrisse o rosto da paciente, enquanto afastava dolorosamente o seu olhar não-iniciado do torso completamente exposto da mãe, que possivelmente lhe revelava os primeiros seios que ela aguma vez vira.
Cada ordem que proferia era acompanhada por uns pesados murmúrios em arábe que emergiam por detrás da máscara do médico, o qual ia pedindo à enfermeira que fizesse isso mesmo e lhe compusesse o véu. O médico parecia despreocupado, mas o filho estava enredado numa agonizante teia de desconforto. Caminhava de um lado para o outro, vergado à ansiedade pela saúde da sua progenitora, à ansiedade pela dignidade dela, e à ansiedade pelas responsabilidades dela para com Deus. A doente em estado crítico, com o seu rosto velado e os seus seios expostos, descaídos pela idade, propiciava uma visão incrível. Eu sentia-me tão desconcertada quanto o jovem filho saudita.
Olhei para a paciente, completamente exposta, excepto no seu rosto velado, e para o frágil filho que supervisionava (e porque não uma filha? Pensava eu). Enquanto o rosto dela dormia, envolto no coma profundo induzido pela sedação, a visão daquele véu era muito perturbadora. Decerto Deus não exigira medidas tão extremas para ocultar as feições dela aos médicos que precisassem de lhe inspeccionar o corpo? Teria uma muçulmana doente e inconsciente as mesmas responsabilidade que uma outra que estivesse consciente e com um corpo inteiramente apto? Embora eu própria fosse muçulmana, nunca antes me havia confrontado com tais questões. O meu debate era íntimo e solitário; todos os que me rodeavam estavam muito cientes das suas obrigações. Como o paciente era uma mulher, tinha de estar velada. O médico ia dando instruções à enfermeira filipina para que esta acatasse as recomendações do filho. A filipina estava evidentemente habituada àquele espectáculo. E o filho conhecia os seus deveres para com a mãe. Só eu permanecia tolhida pela confusão.
A enfermeira removeu o véu para atender à passagem do ar, retirando desta toda a saliva que ali se havia acumulado durante a última meia hora. Agora que o nylon negro fora erguido, consegui finalmente ver a Sra. al-Otaibi. O seu rosto gasto e engelhado estava marcado pela dor (...)
As marcas que ostentava no rosto anunciavam uma mulher de elevado estatuto. (...) As pequenas mãos morenas haviam cerrado os punhos durante o sono. Abri-lhos e observei as unhas curtas e anémicas, orladas de um tom alaranjado. Eu sabia que aquela cor era henna. Olhei para as minhas mãos a segurarem as dela, e para as minhas unhas brilhantes e polidas a contrastarem com aquela manicura alaranjada! As minhas eram ocidentais, as dela eram orientais, tão diferentes, mas ambas em busca da mesma fantasia: alterar a cor das nossas unhas. (...)
No seu rotundo ventre, a superfície estava salpicada de diversas cicatrizes inexplicáveis: pequenas, perfurantes, e mais pálidas do que a pele circundante. Distribuíam-se de forma regular pelo quadrante superior direito do abdómen. Não estavam no sítio adequado a uma laparoscopia, mas eu não conhecia nenhum outro instrumento que ali pudesse deixar tais marcas. Olhei para o colega, intrigada.
- Ela foi ao xamã, ao curandeiro beduíno. Todas elas fazem isso. Vemos muitas vezes essas marcas nas nossas doentes hepáticas – disse-me ele
- O xamã usou um ferro em brasa para tratar a dor que a paciente provavelmente teve há uns meses.
Mais tarde também eu viria a observar que muitas pacientes ostentavam essas mesmas marcas, muitas vezes por procurarem alívio para as dores dos seus fígados inchados e inflamados. A hepatite é muito comum na Árabia Saudita, e na realidade o meu novo local de trabalho, o Hospital da Guarda Nacional do rei Fahad, em Riade, era um centro de excelência no tratamento de doenças hepáticas. Os mais pobres, que não haviam passado pelos muitos centros de saúde pública no reino e optavam pelos curandeiros tradicionais, quando procuravam a nossa ajuda, já os seus males iam bastante avançados.
E foi assim, entre a familiar e reluzente ambiência tecnológica dos Cuidados Intensivos, onde me sentia tão à vontade, que deparei com o desconhecido. Fiquei profundamente perplexa com a persistência das antigas práticas que o corpo desta mulher revelava. Mais perturbante ainda seria saber que papel desempenhavam os xamãs e outros curandeiros pagãos num mundo dedicado ao Islão, uma religião que sacraliza o avanço do conhecimento?
Interroguei-me sobre os cuidados a que o filho se entregava para cobrir a sua mãe, apesar dela estar gravemente doente. Será que não percebia que isso era o menos importante, agora que a vida dela se poderia finar a qualquer momento? Não saberia que Deus é misericordioso, tolerante e compreensivo, e que jamais reclamaria do uso do véu nestas circunstâncias – nem, julgava eu, em circunstância alguma?
De certa forma assumi que o véu lhe era imposto pelo filho, mas talvez me tivesse enganado acerca disso também. Começava já a achar-me muito ignorante acerca deste País. Talvez a própria paciente se enfurecesse caso a sua modéstia fosse desvelada enquanto ela estivesse incapaz de resistir. Para mim nada era evidente, a não ser que o uso do véu era essencial e incontornável, mesmo para uma moribunda.
Eram estes os hábitos do novo mundo em que eu estava agora encerrada. Porque daqui em diante, e durante os próximos dois anos, haveria de ver muitas coisas que não conseguiria compreender. Embora fosse muçulmana, aqui eu não passava de uma estranha no reino.”
Destaco no capítulo 2 ( A hora de deixar a América):
“Tendo-me sido negada a renovação do visto, chegara ao fim o mágico encanto pela minha imigração para os Estados Unidos. Falhado o derradeiro apelo para inverter o meu estatuto, decidira levar as minhas credenciais médicas para o Médio Oriente, onde a medicina americana era amplamente praticada. Os meus poucos anos haviam sido muito produtivos, e após algumas semanas de indecisão já não podia mesmo permanecer mais tempo nos EUA, pois fora contratada por um hospital na Arábia Saudita.
Acelerei o silencioso Lexus, e os limpa-vidros foram batendo as minhas mágoas ao ritmo de um metrónomo. Perguntei-me quando voltaria a estar sentada ao volante de um automóvel. Já estava informada de que na Arábia Saudita era ilegal uma mulher conduzir um carro. Em Riade estaria autorizada a efectuar qualquer procedimento nos doentes em estado crítico, mas nunca a conduzir um veículo motorizado. Só os homens podiam usufruir desse privilégio.”
Vou actualmente no 7º Capítulo. Confesso que não tem sido um livro fácil de digerir. Tinha já bem presente esta realidade, dado o último livro que tinha lido e do qual já falei aqui, mas e neste livro, a narração de uma Médica que passou do mundo Ocidental para o mundo Oriental transmite-me, sem qualquer dúvida, a bênção que é a minha liberdade total. Posso vestir o que quizer, tenho direitos, posso conduzir... vivo num mundo onde a igualdade de direitos entre homens e mulheres existe!
Se tivessemos isto sempre presente... talvez conseguissemos sentir o quanto somos uns felizardos e que desgostos de amor ou desamores, desmotivações laborais, ou outros problemas que podemos achar que temos, assumem uma insignificante importância nas nossas vidas!
Pensem nisso :)
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